sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Se você tiver HIV, não saberá

Texto publicado na edição 741 do jornal Ponto Final
 
O primeiro relato de diagnóstico da doença atualmente conhecida como Aids é datada de 5 de julho de 1981, nos Estados Unidos. A origem da doença, trinta e um anos passados, é ainda um mistério. Teorias que vão desde o contato com primatas – uma mutação do vírus da imunodeficiência símia – proveniente da caça ocorrida desde o século 19, até negligência de pesquisadores que buscavam desenvolver uma vacina contra a poliomielite, na década de 1950, permeiam a rede mundial de computadores e estão abertas a todos.
Entretanto, não tão acessíveis quanto à informação referente ao HIV, os testes de detecção do vírus estão escassos e restritos na região do ABC. A campanha “Fique Sabendo”, integrada ao Dia Mundial de Combate a Aids, cujo objetivo é promover ações de detecção e prevenção à doença, não ocorrem nas cidade de Santo André, São Caetano, Diadema e Ribeirão Pires, como denuncia matéria veiculada nesta edição do Ponto Final (página 4).
Os motivos e suposições para a isenção desses municípios na agenda da campanha variam. Mais do que elucubrar sobre os pretextos, comumente vinculados ao despreparo administrativo e ao evidente descaso de fim de mandato de alguns administradores, cabe o levantamento primordial: picuinhas pseudo-políticas não devem, jamais, constarem na agenda da saúde pública.
Estimativas da Secretaria da Saúde de São Paulo apontam que, diariamente, oito pessoas são mortas pelo vírus no Estado. E apesar da redução gradual dos últimos dez anos, é importante não esquecer que uma guerra só é vencida com ações massivas de repreensão ao inimigo.
E não se enganem caros leitores, estamos em uma guerra. Uma guerra que, além dos limites do corpo, no qual o HIV se prolifera, atinge o campo social. Sem ações coordenadas, entre agentes federais, estatais e municipais, numa unidade presentemente inviável em virtude das características intrínsecas à política, certamente sucumbiremos e, dentro em pouco, todos estarão entre os oito mortos por dia.
Mas não estendamos este texto aos limites da politicidade, tampouco entremos no campo da crítica revolucionária ao sistema político. Por hora, queremos o essencial. E conhecimento é essencial. Sem, por exemplo, a possibilidade de realizar um simples exame, de trinta minutos e custo ínfimo ao governo, podemos sem saber estar dando armas ao inimigo, proliferando um vírus maligno. Por mero descaso organizativo da organização de nossos governantes, podemos estar semeando a própria destruição.
Prevenção, evidente, é o caminho primordial para a erradicação da Aids. Use camisinha, diga não as drogas, mantenha um relacionamento seguro. Todas essas frases de efeito são, certamente, o fundamento do combate. Mas queremos mais. Queremos realizar um exame simples – e isso se estende a outros ramos da medicina – sem ter de passar por burocracias infundadas que levam o tempo de espera para além da expectativa de vida média dos brasileiros, queremos o direito de participar de uma campanha em prol da vida, queremos viver.
Precaução e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Mas, no final, caso fechemos os olhos às circunstâncias, só restarão os que, por usurpação, banqueteiam sobre nossas carcaças pagadoras de impostos.
 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Medo e delírio em alto mar – notas sobre um Cruzeiro

Você está numa imensa fila, de cinco ou seis voltas observando os atendentes levantarem plaquinhas com os dizeres “Libero” e “(algo em inglês que ninguém da viagem conseguiu lembrar posteriormente)”; é um sinal para que o próximo passageiro vá ao guichê fazer o check in de embarque e avisar como pretende pagar suas contas no interior do navio MSC Magnífica.
Algo que você já sabia por intermédio do seu agente de viagem se confirma, o Cruzeiro só aceita pagamentos em dólar, o que o obriga a sumariamente seguir dois caminhos: passar pelo câmbio e comprar dólares para associar ao seu cartão do navio (que serve tanto para abrir a porta da sua cabine quanto para gastar nos bares etc.) ou associar ao mesmo um cartão de crédito internacional. Optamos pela segunda opção (frustrada, em virtude de uma pane no sistema de computadores, como explicou o jovem atendente. Seria preciso fazer isso no interior do navio).
Os dizeres em italiano e inglês (ainda que um inglês idiota, pois a palavra Free teria o mesmo efeito com muito menos caracteres, o que teria me permitido lembra-la neste texto), assim como a moeda corrente e a obrigatoriedade de vincular seu cartão da cabine a um esquema de pagamento era um presságio do que estaríamos por ver.
Embarcamos e fomos recebidos pela tripulação com mecânicos Bem Vindos, cujo sotaque era inegável – sotaques variados se apresentariam, ainda, quando pouco depois chegamos ao 13° andar, onde estavam os bares. Ao contrário do alto escalão de comandantes, imediatos etc., formado majoritariamente por italianos (claro, o navio é italiano), aqui um conjunto de habitantes do terceiro mundo serviam mesas e eram, comumente, taxados de arrogantes pelos passageiros por não falarem uma palavra de português. Peruanos, colombianos, filipinos, uns poucos brasileiros e toda sorte de habitantes do lado de baixo da linha do equador recebiam uma enorme quantidade de pedidos.
A incompetência linguística dos atendentes só não era superada pela dos passageiros, que gritavam desesperados, como macacos quando veem seus tratadores, acenando os cartões e reclamando do atendimento. Os tratadores certamente entendem melhor os macacos.
Não demorou a os emergentes viajantes brasileiros desenvolverem uma forma rústica de comunicação; todos aprenderam a apontar seus desejos no cardápio e a falar beer. Como dificilmente pegariam mais de dez latas, não tinham problemas em distinguir, também, o número que gostariam.
Podia se ver, até mesmo porque eu estava lá, que a ralé finalmente podia usufruir dos prazeres das classes abastadas. As classes abastadas, por sua vez, escandalizavam-se com a falta de tino da ralé. A ralé possuía cartões de crédito e, pior de tudo, crédito em seus cartões. Madames e especuladores se mostravam magnânimos ostentando suas marcas de roupas, decência e drinks caros (uma lata de cerveja custava 2,80 dólares mais a taxa de serviço de 15%, o que nos gerava uma conta de 3,22 dólares por lata, ou cerca de 6,50 reais. Dá para imaginar o custo de um drink de 8 dólares, que você precisaria de uns quatro só para abrir o apetite para o almoço – felizmente vinculado ao custo da viagem, assim como o jantar).
Os ricos não estavam contentes com a presença dos pobres, mas tentavam não demonstrar, limitando-se a pequenos olhares de desaprovação, mascarados por baixo de seus óculos e chapéus.
Já que comentei do almoço, vamos a ele.
Antes de os quartos estarem liberados, com as respectivas malas dos passageiros dispostas em suas portas, era obrigatório ficar em algum ponto do navio. A maioria escolheu os bares. O embarque ocorreu por volta das 13h e o almoço seria servido aproximadamente duas horas depois – tempo suficiente para os passageiros beberem e tornarem-se esfomeados animalescos.
Uma fila de cerca de quarenta metros se formou entre o balcão de comidas e o resto do restaurante. O pânico tomava conta e muitos não desmaiaram por educação.
Após se alimentarem, todos puderam seguir, finalmente, para seus quartos e colocarem roupas mais confortáveis – a sensação térmica era de pelo menos trinta graus.
Confortavelmente trajados e parcialmente alimentados, a grande maioria retornou ao convés dos bares e agiram como marinheiros em terra firme, bebendo compulsivamente – o idioma estrangeiro já não incomodava, pois ninguém mais se entendia de qualquer maneira.
Quantias exorbitantes de dólares eram computadas segundo a segundo pelos balconistas. Pessoas que passariam o ano de 2013 inteiro pagando as contas das extravagâncias do fim de 2012 pareciam não se importar com o tanto de trabalho extra que fariam pela falta de tino financeiro praticada a bordo.
Estávamos numa orgia econômica que os pobres da classe média esperaram a vida toda para exercer. Deslumbravam-se tratando os atendentes como lixo, numa vingança social histórica. Era a vez deles, e sugariam cada gota de sangue que sentiram lhes ter sido sugada um dia.
Os três dias que se seguiram tiveram, por sua vez, as mesmas características, excetuando os locais – muitos foram aos cassinos, outros compraram coisas a bordo no que parecia um shopping flutuante, alguns se mantiveram em suas cabines, mareados, praguejando o balanço do navio. Festas, comida, álcool, drogas (quem sabe?!), suor e cartões de créditos estourados, talvez a isso tenha se limitado o Cruzeiro realizado entre 16 e 19 de novembro de 2012, partindo do Porto de Santos e seguindo para Búzios, Ubatuba, e de volta a Santos.
Vale a pena? Não sei ao certo se uma pena pode ser associada a um passeio. Mas, todavia, a diversão certamente ocupou os passageiros pela maioria do tempo. Diversão essa que, certamente, será questionada parcialmente com a chegada da fatura da prestadora de crédito em dezembro próximo. Mas isso é outra história...