Não é por mero acaso que um
sistema econômico cujo caráter primordial é a existência de uma minoria rica em
detrimento à maioria pobre se mantém nos altares de tantos indivíduos (e me refiro
aos indivíduos pobres). O capitalismo é uma realidade (apesar do caos interno
que o rege) irrecusável, ou seja, sua existência e reprodução são patentes,
independentemente do fato mais claro de sua ontologia: o método da exploração
e, logo, da existência de exploradores e explorados.
Em face de tal especificidade,
tão aberta e lógica, somente por meio de dois fatores primordiais sua
manutenção pode se fundamentar sem grandes levantes populares, protestos ou, no
extremo, a revolução social: a esperança dos pobres em tornarem-se ricos, e o
medo dos mesmos em perder o pouco que tem. O temor, especialmente, é utilizado
na maioria das vezes por meio de analogias a fracassos como a União Soviética
(URSS) ou, até mesmo, períodos anteriores da história (o que pouco se diz, é a
distorção que a própria URSS, por exemplo, praticava do comunismo – realizado a
revelia da teoria marxiana, e ainda assim coroado sob sua regência).
Estereótipos
Pode se afirmar sem erro que a
ascensão financeira, ou seja, a passagem de uma classe social para outra mais
elevada é o fetiche da atualidade. Personagens que saíram da miséria e
tornaram-se ricos são os herois do tempo moderno. Para citar um exemplo nacional,
podemos tratar do caso do Senor Abravanel, midiaticamente conhecido sob o
pseudônimo de Silvio Santos – o capitalista mais aclamado (e por que não amado)
do País.
O menino pobre que, somente por
meio do esforço individual, da labuta e do destino, chegou ao mais alto
grau, tornando-se o multimilionário proprietário de um canal de televisão, um
banco, um sistema de capitalização (que é, em natureza, uma loteria), e tantos
outros negócios lucrativos. Quanta ingenuidade imaginarmos que tal exceção é a
regra. E quanta astúcia dos capitalistas disseminarem a ideia de que
trabalhando qualquer um pode, contando com certa dose de sorte e oportunismo,
seguir a mesma trilha.
Afirmar que todos têm as mesmas
oportunidades, apontando a vontade e o empreendedorismo como meio para os fins,
é excluir completamente a existência de classes sociais antagônicas. E, por
meio desta ideia corrente do ideário filosófico político, de que o homem, como
gênero, sempre teve uma natureza intrínseca a seu ser, fato que fundamenta sua
sociabilidade, o capitalismo transmuta-se numa forma social natural.
Empreendedorismo
Sob a insígnia dos estereótipos,
se inaugura uma nova modalidade: o empreendedorismo. Numa forma de inversão –
que, todavia, podemos assumir como uma estratégia – o capitalismo parece
deixar, em certa medida, de lado o fator regional utilizado até então como
forma majoritária de procedimento à resolução de problemáticas ligadas ao meio
social e econômico, e passa a pautar pelo protagonismo de pequenos empresários,
muitas vezes estabelecidos em bairros ou cidades.
Assim, surge a questão: porque o
empreendedorismo, ou seja, o protagonismo de classes antes excluídas do
processo de capitalização da economia torna-se foco do sistema? O estereótipo contemporâneo
surge mais uma vez – o esforço como ascensão social e, logo, a afirmação de que
tal empenho é o fator predominante da elevação financeira dos indivíduos.
Segundo o Professor Paulo Lot, Coordenador do Núcleo de Empregabilidade e Apoio
Psicopedagógico (NEP) da Universidade São Francisco (USF), “não se concebe mais
a dissociação da teoria com a prática, ou seja, da formação com o mercado de
trabalho. O empreendedorismo é a criação de algo novo a partir da
identificação de uma oportunidade. A dedicação, a persistência e a ousadia
aparecem como atitudes imprescindíveis neste processo para obter os objetivos
pretendidos”.
Segundo ele, o estudante deve
aprender a pensar e agir por conta própria, com criatividade, liderança e visão
de futuro, para inovar e ocupar o seu espaço no mercado. “É imprescindível uma
boa formação empreendedora, onde o próprio universitário seja o protagonista de
sua empregabilidade”, completa.
Propaganda
Eis aqui um tópico interessante.
De acordo com Christiane Gade, autora do livro “Psicologia do Consumidor”,
“fica claro que somente se estudam o comportamento do consumidor [...] países
de orientação capitalista”. Isso porque, segundo a autora: “Em sociedades cuja capacidade de produção é
pobremente desenvolvida [ela usa o exemplo da URSS] caberá aos planejadores
destas sociedades estudar quais são os bens de consumo mais adequados ao seu
sistema de produção e colocá-los no mercado baseando-se na premissa de que o
consumidor consumirá tudo o que existe para consumir”.
Mas nosso foco são as nações que
praticam o capital. Porém, antes de continuar, cabe a citação de um personagem
do romance de Jean-Jacques Rousseau,
intitulado ‘A Nova Heloisa’. Nesta cena, Saint-Preux, sentindo as vicissitudes
de um mundo em vias do capitalismo, escreve à Heloisa, sua amada: “Eu começo a sentir a
embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade
de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas
as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas
perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu
lugar”.
Não haveria descrição mais
pertinente para compreender os efeitos de um mercado capitalista num sujeito!
Todavia, a patente despersonalização causada nos indivíduos não parece perturbar
o mercado – e de fato não perturba. Ao contrário, é utilizado como mecanismo de
marketing.
Se à teoria materialista da
história é habitualmente atribuída “a afirmação de que a principal motivação do
homem é o desejo de satisfação material”, como afirma Erich Froom, parece que a
indústria da propaganda resolveu fundi-la ao pensamento de Freud, “segundo o
qual o apetite sexual é que constitui a principal motivação de ação”.
Incongruências teóricas a parte,
a metodologia parece funcionar. Discutir se a humanidade pode ou não ser
colocada no bojo da reflexão darwiniana acerca da seleção natural por meio de
características morfológicas da espécie, assim como se tais distintivos pertinentes
à biologia foram depreciados pela modernidade e pelo capitalismo ao nível da
posse de bens, não é o intuito deste escrito. Mas é inegável que, atualmente,
particularidades econômicas são levadas em consideração no momento em que um
indivíduo é analisado por outro indivíduo (ou grupo deles).
Entretanto, é necessário cautela.
Assumir que o gênero humano estabelece parâmetros de avaliação do caráter
alheio através de premissas pré-estabelecidas, de qualquer natureza, pode levar
a pensar que os aspectos do capitalismo são de ordem espontânea, invertendo a
situação e colocando tal sistema econômico como um resultado, e não como uma
causa das características sociais.
Patologia
Uma sociedade na qual o indivíduo
encontra-se à revelia de sua plena realização é uma sociedade à qual podemos
designar o caráter de doente. Está é a sociedade capitalista. Uma vez aceitando
que um sistema social está afetado patologicamente, automaticamente é preciso assumir
que o reflexo disto recai sobre os indivíduos que compõem tal sociedade. Dentre
as diversas agonias pelas quais as pessoas inseridas no capitalismo passam, uma
nos interessa primordialmente: o fenômeno da alienação.
Aqui não dissertarei substancialmente
sobre a alienação dos meios de produção, tema no qual tanto se debruçou Marx.
Gostaria de abordar um viés mais psicológico que econômico, ainda que um
advenha do outro. Para dar início a esta discussão, definamos um conceito que
será pertinente adiante: o da transferência.
Freud observou que pacientes
tendem a transferir, para a figura do psicanalista, sentimentos relacionados à
sua infância primordialmente experimentados com os pais: amor, ódio, temor ou
outros. “Não obstante, não é uma interpretação completa. O paciente adulto não
é uma criança, e falar da criança nele [...] não faz justiça à complexidade dos
fatos”. Os anseios numa pessoa adulta estão, comumente, relacionados à
alienação. Ou seja, num sentido psicopatológico, o indivíduo “não se sente
forte, está receoso porque não se sente sujeito ou originador de seus próprios
atos”. É sob influência destes sentimentos, que o homem alienado executa a
transferência. Socialmente, o problema é maior do que num consultório, onde a
dita transferência é destinada ao psicanalista. Em sociedade, isso, muitas
vezes, ocorre nas “figuras de autoridade, na vida política, religiosa”.
Exemplo disto é a idealização do
controle sobre o ato de raciocinar, explicitada por Fromm: “Alguém acredita que pensou alguma coisa, e que sua ideia
é resultado de sua própria atividade de reflexão; a verdade é que transfere seu
cérebro para os ídolos da opinião pública, os jornais, o governo, ou um líder
político. Acredita que estes expressam seu pensamento, quando na realidade ele
aceita os pensamentos dessas personalidades como se seus fossem, porque as
escolheu para ídolos, deuses da sabedoria e do conhecimento”.
Podemos, portanto, dizer que
quando a esperança é firmada como o objetivo e não como meio deste, temos um
quadro de alienação. É a “esperança na qual o futuro é transformado num ídolo”.
Quantas vezes não nos deparamos com
pessoas que transformam a esperança na personificação da prosperidade? Robespierre,
certamente, se sentiria orgulhoso: “Apressa-te, ó posteridade, em fazer chegar
a hora da igualdade, da justiça, da felicidade!”. Marx, por sua vez, rolaria no
túmulo frente aos dias atuais, no qual a história é colocada no sentido de um
destino quase karmatico, e a ação do indivíduo têm pouca ou nenhuma
importância frente aos acontecimentos. Marx responderia: “A história nada faz,
não possui riquezas colossais, não trava batalhas! É antes o homem, o homem
vivo e real, quem faz tudo isso. A história não usa o homem como um meio para
seus fins, como se ele fosse uma pessoa à parte; ela nada mais é do que a
atividade do homem em busca de seus objetivos”.
É em grande medida, desta
esperança que o capital se utiliza para manutenciar sua reprodução. Uma vez que
a progressividade da história independe da ação objetiva da própria humanidade,
a esperança que os caminhos levem um indivíduo miserável qualquer à, por
exemplo, riquezas, passam da impossibilidade empírica existente para a
probabilidade casual pautada por preceitos que beiram a metafísica, quando
abordados no mérito realidade.
Perdendo a autonomia do próprio percurso
histórico, não há ao homem outra culminância que não a alienação. Seus
próprios desejos, funções de pensamento e sentimento, tornam-se exteriores a
ele. “Essa falta de senso de identidade tem muitas consequências. A mais
fundamental e geral é impedir a integração da personalidade total, deixando a
pessoa desnuda dentro de si, [e tirando-lhe] a capacidade de desejar uma coisa,
ou quando parece desejar, falta autenticidade a tal desejo”.
Conclusão – O shopping
Algumas ideias de cunho mais
acadêmico estavam em andamento para a elaboração desta conclusão, quando uma
necessidade de âmbito prático obrigou-me a comparecer ao templo da sociedade
capitalista de consumo: o Shopping Center (a tinta de minha impressora havia
acabado).
A explicação contida no parágrafo
acima assinala, ao menos, duas questões pertinentes à sociedade atual: 1° a
existência de ambientes de consumo, rigidamente controlados, chamados de
Shopping Centers; e 2° a necessidade socialmente determinada de que, para o
simples ato de comprar tinta para uma impressora, o indivíduo seja obrigado a
comparecer no citado ambiente.
Para tratar do tema, vou
relacionar minha experiência pessoal na citada visita ao shopping Grand Plaza, em Santo André, com falas contidas
numa palestra da antiga professora de geografia do primeiro ano de graduação do
curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André, Isabel Aparecida Pinto
Alvarez. A palestra em questão foi realizada em 16/08/2000 e compõe as
discussões do VI Congresso de História Da Região do
ABC, nesta edição ocorrido em Ribeirão Pires, no ano 2000. O título da fala de
Isabel foi Transformações a partir
da implantação dos Shoppings Center – os shoppings como um espaço de
normatização. Ela começa utilizando a região do ABC como exemplo:
“Quando olhamos a paisagem no ABC
nos últimos anos, e vemos esses grandes equipamentos, cercados, com
estacionamentos fechados, acabamentos suntuosos – usando materiais modernos e
caros –, com signos da moda indicando as principais lojas e magazines... Esses
espaços (os shoppings) não são simples centros de comércio, não são simples
locais de venda do que se fez num [dado] processo produtivo. Eles se constituem como elementos fundamentais [que
possibilitam entender] como é que a sociedade urbana se produz e se reproduz
neste final de século. Nesse sentido, os shoppings são o ponto de partida para
fazermos uma reflexão sobre o que é o modo de vida urbano e o que é a cidade
hoje.
Realmente, podemos relacionar a
existência destes grandes centros de comércio com as necessidades de produção e
reprodução da sociedade contemporânea. Ainda mais, podemos relacionar com a
atual economia política que, não somente cria ao lado da própria expansão
tecnológica e industrial bens específicos de consumo, como também cria os
espaços nos quais tais bens devem ser consumidos. Isabel continua:
“O Shopping ABC, que é o antigo
Mappin [...] afirma que recebe cerca de 1 milhão e duzentas mil pessoas por
mês. Ou seja, recebe por mês, quase metade da população do Grande ABC. O ABC
Plaza [atual Grand Plaza] que se situa junto à Estação de Santo André e ao
terminal de Trólebus, junto a uma avenida tradicionalmente industrial do
município – que é a Avenida Industrial – [...] afirma que chega a receber em
média, quando está próximo a datas comemorativas, aos finais de semana, 110 mil
pessoas. Quando não está em datas comemorativas recebe cerca de 80 a 85 mil
pessoas por final de semana. Então, só pelo fluxo de pessoas que eles atraem,
já podemos pensar o diálogo que esses objetos travam com os espaços públicos da
cidade. Ao mesmo tempo, também nos leva a refletir sobre seu papel na
finalidade urbana. Um empreendimento que atrai 110 mil pessoas num final de
semana, que atrai 1 milhão e duzentas mil ao longo de um mês, certamente altera
a dinâmica da vida das pessoas e das mercadorias nas cidades”.
E esta alteração na dinâmica foi
o meu caso. Nenhuma loja no bairro em que moro vende a tal tinta de impressora.
As que vendem estão, em termos de agilidade de locomoção, mais distantes que o
shopping (podem estar espacialmente mais próximas, porém, no meu caso que
utilizo condução pública, tornam-se inacessíveis – evidentemente, o shopping
está numa localidade de fácil acesso para diversos pontos ao seu redor). Ou
seja, uma necessidade da sociedade atual – utilizar uma impressora para imprimir
um texto – levou-me a compra de um periférico que, por sua vez, somente é
encontrado num dado local que, não por coincidência, agrega dezenas de outras
lojas, ramos, especialidades etc. que o encantam com variedade de cores,
possibilidade e sabores.
“[Isso porque] Os shoppings não
são apenas centros de compra. Não são apenas destino final da produção. Eles se
constituem num centro de informação e reprodução de um modo de vida. Mudando os
referenciais da população com relação aos locais de encontro, de lazer, e de
compras. Enquanto a presença dos shoppings não se fazia de maneira
significativa, a centralidade urbana [por exemplo em Santo André] estava
marcadamente na Rua [Coronel] Oliveira Lima e adjacências. Era uma centralidade
que, por ser um espaço público, um espaço da rua, guardava uma série de
diferenças: pedintes, [menores] abandonados, catadores de papel, donas de casa,
estudantes... [Tais pessoas] viam-se e eram vistos por pessoas de outras
classes sociais; de maior poder aquisitivo [...] Os shoppings Center são
espaços normatizados. O objetivo é permitir a reprodução da mercadoria.
Permitir a reprodução dos valores do consumo. Na rua, por mais que exista o
comércio e a venda da mercadoria, o que está colocado é a questão da diferença.
Nem tudo pode ser normatizado na rua – ela é o espaço do público, o shopping é
o espaço do privado.
E lá estava eu, caminhando pelo
shopping em busca da loja na qual compraria o que me propus. Os corredores são,
realmente, espaços normatizados repletos de pessoas normatizadas. Tais pessoas,
é claro, não são normatizadas pela existência dos shoppings. Ao contrário, os
shoppings existem por que tais pessoas estão normatizadas – e o estão em
virtude de elementos ideológicos e sociais muito superiores ao shopping em si.
Quando encontrei a loja, senti
mais uma vez a mão pesada da
necessidade em face da demência do monopólio da compra: o preço é muito mais
alto quando só um lugar comercializa o produto. Sem alternativa, comprei.
Sempre que caminho por tais
ambientes sinto-me vigiado. Mas isso não é paranoia, verdadeiramente somos
vigiados e, quando você não está encaixado aos estereótipos que os seguranças
estão acostumados a se deparar diariamente, torna-se foco da atenção dos
agentes da ordem.
“Quando você entra no shopping
Center, dependendo da forma e da roupa com a qual você entra, o segurança vem
barrar. Não sei se você se lembram, no início da década de 1990 veio um cantor
punk ao Brasil, um famoso, inglês, não me lembro qual era... Ele veio ao Brasil
e foi ao shopping Iguatemi e deu o maior “sururu” porque os seguranças o
puseram para fora. E porque? Porque ele estava vestido com as roupas que ele
está habituado a vestir. E ele não foi aceito por ser exótico demais”.
Não foi o meu caso. Não fui
expulso. Mas para desespero total deste que narra, ao chegar à porta de saída
uma tempestade torrencial impedia minha ida ao ponto de ônibus. Nesse momento,
realmente senti a perseguição dos seguranças que, ao me verem ir e voltar
periodicamente esperando a chuva passar, circular sem sacolas, sem companhia,
sem roupas caras ou chave de carro pendente no bolso, certamente pensaram estar
diante de um “elemento do caos”. Um indivíduo alienado que não vive sob as asas
do agente da felicidade: as compras pelas compras; pela vã saciedade do
gasto.
A cada banco que me sentava para
esperar – e agora eles são poucos, pois uma grande quantidade de pontos de
parada restringe a circulação dos consumidores e, automaticamente, impede que
consumam mais – homens vestindo terno surgiam com seus rádios tentando,
inutilmente, serem discretos enquanto comunicavam-se entre si e me olhavam
desconfiados. Até mesmo os indivíduos que por ali passeava encaravam aquele
sujeito, sem sacolas, como algo no mínimo estranho.
Frente a tal situação, decidi partir e seguir sob a chuva.
Melhor se mollhar por livre e espontânea vontade.