sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Quem é Robsbaum Trilha?

Ele é bêbado e pervertido. Sua trajetória libertina é repleta de trepadas com mulheres sensuais, porres homéricos e brigas colossais. Seu nome é Robsbaum Trilha, o mais indecente ser vivo que já pisou no ABC.


Foi com surpresa que este que escreve atendeu o telefone numa certa madrugada e teve o prazer de ouvir a voz rouca e embolada de Robsbaum. “E aí, seu puto!”, disse ele. “To todo fodido”, continuou, “Tem alguma merda pra escrever aí?”. 

Sempre tem, respondi.

Acontece que o “estar todo fodido” de Robsbaum significa, nove em dez vezes, mulher. O encanto que exerce no sexo oposto é superado somente pela presença tóxica de seu caráter, e palavras como constância, segurança e prudência jamais foram incorporadas ao vocabulário deste iminente jornalista, o que por fim, juntamente ao seu alcoolismo proeminente, dava fim a todos os seus relacionamentos.

Sim, claro, Robsbaum Trilha exerce essa que deve ser a segunda dentre as mais antigas profissões do mundo – pois, surgida a categoria de prostituta, a de jornalista procederia naturalmente.

Mas Robsbaum é também um desgraçado! Reza a lenda que sua presença emana um fator de morte que destrói tudo ao redor – uma maldade, pois a verdade é que participou da decadência de tantas coisas, entre pessoas e lugares, não por ser o responsável pela bancarrota, mas por ser a última esperança aos desesperados (justificava ele).

Não se tem notícia de filhos ou casamento na vida de Robsbaum. Algumas paixões, certamente. Todavia, o amor sempre foi um “cão dos diabos”, parafraseava ele, resgatando o velho Buk, de forma que sempre manteve um cômodo espaçoso no coração, destinado a amar o amor em si, não a figura na qual o sentimento insiste em recair. Em outras palavras, o negócio de Robsbaum é meter, e só.

“Estou me mudando pra aí, consegue algum esquema pra mim?”, perguntou ele.

“Vou falar com uma galera!”

“Pode ser qualquer porra. Só quero pagar o aluguel e o bar!”

“Demoro!”

O telefone é desligado. Robsbaum vem aí!


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Deus nos quer todos aleijados!

Cientistas descobriram agora que é possível, com o uso de células comuns, criar células-tronco – essas que podem se transformar em qualquer tecido do corpo, ou algo assim... A polêmica com o uso das chamadas células pluripotentes é o método – anterior a este – de aquisição das mesmas, cujo processo inclui a criação e destruição de embriões humanos.


UMA BAITA BABAQUICE!

Falando sério, a controvérsia, por si só, é ridícula: dizer que embriões humanos são, a não ser potencialmente, pessoas, é o mesmo que deixar de comer ovos por considerar infanticídio galináceo. É essa mentalidade tacanha que permite a morte de milhares de mulheres em clínicas clandestinas de aborto.

Mas o novo procedimento é estudado exatamente em virtude dessa imbecilidade metafísica.

Não matemos as crias de Deus!

Sinceramente, se deus existe é, no mínimo, um rapaz bem controverso. O tipo de cara, que só para esnobar, pede café fervendo e o deixa esfriar (roubei essa do Millôr) – exatamente o que ele faz com a fé: exige sem dar nada em troca, a não ser esperança cega.

Alias, cabra EGOÍSTA esse Deus. O filho dele pode curar aleijado, a gente não?

Whatever!

Certas coisas só são amargas se as engolimos (valei-me Millôr!).


Hora de cuspir!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A mensagem visualizada, e não respondida, será o mal do século?

Que saudades dos dias de orelhão e ficha, quando a distância existia e impedia o imediatismo praticado hoje. O telefone era ainda um fetiche proponente a extinguir a correspondência – e engraçado, como no século 19, por carta, os pensadores justificavam tais títulos com muito mais profundidade do que atualmente o fazem os “cabeças” da humanidade.


O “sumiço” tornou-se, de repente, um pecado capital – digno de broncas e DRs astronômicas. Aquele cara que foi até a padaria comprar cigarros e voltou quatro dias depois é uma espécie em extinção – encontrada somente em modelos nascidos em meados da década de 1940... Os jovens estão sempre “encontráveis”.

Um artigo da jornalista Eliane Brum, publicado no site da revista Época – pois é, também fiquei surpreso por algo de qualidade estar ali – realiza uma análise interessante:  “Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do “outro” fosse, por direito, também o “meu” tempo. E até como se o corpo do outro fosse o meu corpo, já que posso invadi-lo, simbolicamente, a qualquer momento”.

PORRA! É ISSO!

10:39 - “Oi, td bem?”
Mensagem visualizada às 10:39

10:40 – “Vc ta aí?”

10:40 – “Tá fazendo o que?”
Mensagem visualizada às 10:41

10:41 – “L Não vai responder?”
Mensagem visualizada às 10:41

10:41 – “Puto(a)!”

A mensagem visualizada, e não respondida, será o mal do século? Certamente psicanalistas têm lucrado bastante com essa funcionalidade dos novos métodos de conversação online. Para os internautas compulsivos deve equivaler ao “bater o telefone na cara”; ou, quem sabe, até mesmo àquele furo, no qual o sujeito fica plantado no restaurante beliscando pão e tomando água...


Tá aí, caro leitor, não é a toa que o Rivotril tem se tornado um dos medicamentos mais consumidos dos últimos tempos – e como num passe de mágica todos estão calmos, aguardando “infinitos” quinze minutos pela réplica a uma frase de suma importância, como “esse calor tá foda!” ou “você viu o canal 49 ontem, o cara caiu de cima de um balde...”. A velocidade está nos transformando em babacas histéricos. E agora dá licença, que vou ir comprar cigarros...

sábado, 25 de janeiro de 2014

Policiais e jornalistas: o encontro da coxinha e do pastel

Um saldo evidente da série de protestos ocorridos no ano passado foi a visibilidade pública dos casos de agressão policial. Em relação aos profissionais da imprensa, por exemplo, um estudo da associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), realizado em dezembro, aponta que dentre 113 casos analisados de violência deliberada contra jornalistas, 78,6% partiu de policiais – 77% deles ocorreram após o profissional se identificar como tal.

Nunca apanhei em protesto – correr da polícia é arte antiga no 2° Subdistrito andreense. Mas isso não exclui o fato dos coxinhas, sim, baixarem o cassete ao menor sinal de extensão do expediente – a polícia fica puta quando o protesto não acaba na hora ou ocorra qualquer exaltação .

E de onde surgiu a ideia de manifestações terem hora para começar e acabar?  – com certeza de alguma figura intelectualóide, postada entre a crença democrática e a prudência covarde.

Que seja!

De acordo com nota publicada na Revista de Jornalismo ESPM, o “estudo mostra que foram agentes do Estado os que mais tentaram inibir os jornalistas em seu trabalho por meio da força”. E quem nunca viu um policial sem identificação nos protestos? A borrachada é inominável! Impedir a reportagem é só mais um jeito de tirar o crachá (e com ele a responsabilidade).


A notícia se desdobra: “Críticos identificaram na hostilidade de alguns manifestantes contra repórteres ou veículos de suas empresas prova de que a sociedade rejeita a atividade (jornalística)”. Porra, lógico que rejeita! Ao menos os que participam da ação rejeitam, simplesmente porque a categoria de carboidrato frito não é exclusividade dos policiais, e tem muito jornalista que, para não chamar de coxinha – que fica melhor de farda – prefiro nomear como pastel – pipoca por fora e não tem nada dentro. E tenho dito!

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Jornalista morre afogado - parada cardiorrespiratória foi causada por torrente de releases

Você chega na redação, maço de cigarros no bolso, pasta a tira colo, visão turva e rosto amassado e a primeira coisa que faz é ligar o computador.


A consulta ao Facebook é quase um tic nervoso e ocorre antes de qualquer coisa. Engraçado, mas a internet promove essa “proximidade distante” e, por mais que isso seja sabido, sentimos um enorme conforto ao constatar que todos estão juntos em algum lugar, mesmo que espectralmente – esse deve ser, também, o princípio da religião. Foda-se!

O próximo passo são os e-mails. “Crê em deus pai”, que desespero. Ser jornalista frente ao Outlook é constatar a morte iminente da profissão – ao menos a morte de tudo que é bom nela. Assessorias de imprensa parecem ter substituído o setor comercial das empresas, e, ao invés de pagarem pela publicidade, acreditam que podem nos fazer de idiotas colocando uma garotinha de 19 anos ligando e perguntando, com a maior inocência do mundo, se recebemos o release do revolucionário suco de tomates que rejuvenesce a pele. Vocês vão publicar?, questiona a menina que, pela voz, imagino com duas maria-chiquinhas, chupando pirulito. Sinceramente, não sei o que responder. Normalmente me faço de desentendido e digo que “a pauta será analisada por nosso editor”. Vai o cacete! Já deletei essa porra!

Mas não para por aí! Ser jornalista hoje é ter o intelecto relacionado ao de uma abóbora – e não são as de Halloween, porque essas pelo menos têm “cara” – e eis que surgem os concursos jornalísticos, promovidos por empresas que resolvem premiar reportagens – porra, mas é óbvio – exaltando o ramo por elas desenvolvido. Trófeu joínha pra vocês!

Nesse momento o jornalista já fumou quatro cigarros, entornou litros de café e pensou em suicídio – ou morar num lugar tranquilo, no interior (que dá basicamente na mesma) – umas quinze vezes.

O Facebook continua ali, em uma das abas do Google Chrome. De minuto em minuto o jornalista dá uma olhadinha – uma maneira sutil de pedir socorro é postar e compartilhar centenas de inutilidades; algo como jogar uma isca para ver quem se interessa para uma conversa que, por fim, será composta por tópicos sobre a agonia de trabalhar.


Tudo segue e, BINGO!, você ganha um carro pelo celular. “Envie uma mensagem para...”. O telefone toca e: “vocês vão mandar alguém para cobrir a posse do sub-vice-tesoureiro da presidência de sei lá que porra de empresa é essa!? Não, não iremos, estamos em fechamento de edição! Outro cigarro. Outro café. Toma água. Lava as mãos. Respira fundo... Um dia de cada vez!, o lema de oito em cada dez jornalistas, tanto no AA, quanto na redação.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Monique e a Gaivota


A Gaivota

Movimentado, mas não lotado.
Somente pessoas conversando.
Falando o que casais falam todas as manhãs.
Eu não tenho com quem falar. Não mais.
O garçom me trouxe o cardápio. Não olhei. Sei exatamente o que quero comer:
Gaivota.

Não gosto de gaivota. Ou pelo menos acho que não gosto.
Meu peito parece uma locomotiva enquanto espero.
Sinto uma fisgada na barriga e me lembro que não tem a ver com meu apêndice.
Ajeito “o grande dragão cromado cuspidor de fogo nove milímetros” em minha cintura e tudo volta ao normal.
De longe vejo o garçom saindo da cozinha carregando sua bandeja.
O prato que ele traz é grande.
Achei que fosse menor.
Ele coloca à minha frente e me olha com cara de: “Me agradeça logo e me deixe voltar”.
Eu digo que não quero beber nada.
Corto um naco grande de carne, o suficiente para encher a boca.
Sete mastigadas são o suficiente. Não há mais duvida.
Me desculpe, amor. Eu te amo.
O dragão cromado se enfurece.
E a escuridão me acolhe.

Plano de Voo

O mar é um Deus.
Se o que define um Deus é sua grandeza, o mar definitivamente é um Deus.
Ou se o que define um Deus é o beneficio que ele traz a humanidade... Imagine um mundo sem mar.
Mas olhando por esse ponto de vista o mar nos traz mais benefícios visíveis que o próprio Deus. Será que Deus esta no mar? Porém em contraponto o ar é mais importante que o mar.
Se colocarmos em uma escala de importância...
Toca o celular.
- Alô? Bom dia meu amor. Dormiu bem? Tinha certeza que sim. O que? O voo? Claro que está marcado. Isso, só eu você e as estrelas. Que? Quem vai pilotar? Ora, hahaha, claro que é um piloto, né amor. Hahaha, Mas ele fica em uma cabine isolada. Teremos toda privacidade do mundo. Não se preocupe, estou cuidando de tudo pessoalmente. Te encontro no porto às onze? Sabia que sim. Eu te amo. Eu sei que sim. Um beijo. Até logo meu amor.
Minha mãe sempre dizia que o melhor dia do casamento se passa na lua de mel. E o pior decorre desse em diante. É... Com certeza ela não era muito otimista. Já eu... Não conseguiria ver algo ruim nem que minha vida dependesse disso. Principalmente em meu amor. Sei que nunca a decepcionaria.
Opa, e falando em decepcionar... Melhor falar com o piloto e confirmar tudo.

O Voo

Onze horas!
O piloto está a posto.
Seguro um champanhe numa mão e um buquê na outra.
E fito apreensivamente a entrada do porto. Cada luz de farol que passa faz meu coração acelerar. Até que ele acelera sem parar e ela chega. Tão linda como se imagina que uma Deusa possa ser. Eu a abraço e peço desculpas pelo transtorno, ela se aperta junto a mim e diz que esta tudo bem. Sou um maldito cara de sorte.
O sonho dela sempre foi passar a lua de mel sobrevoando o mar. Como meus negócios nos atrasou, achei justo fazer a sua vontade. Meu sonho era uma cama inflável. Então mandei colocar uma em meu avião; batizado, não por acaso, de Monique.

A Deriva

Frio!
Tudo que sinto é frio.

Não sinto as pernas. Não sinto nada, só sinto o frio.
Abro os olhos e é noite. Minha lua de mel. Algo toma forma sobre mim.
O piloto.
Ouço quase que imperceptível seu balbuciar de palavras. Ele diz que ela resistiu, que nos salvou. Não sei exatamente do que esta falando. Tento perguntar de minha esposa, mas não consigo. Ele diz faz quatro dias. Diz algo sobre o tempo e como não há chuvas nessa época. Ele até parece animado. Diz que preciso me alimentar, que iremos resistir. E então traz alguma coisa até minha boca. E antes que eu me empenhasse em outra tentativa de falar, ele retruca: Você precisa comer, eu sei que esta com fome, coma vai. Achei no mar, é gaivota, eu comi, é bom, é gaivota, coma. E então eu comi, comi até me entalar, o gosto não era bom, era diferente, nunca me esquecerei desse gosto, mas mesmo assim comi com um apetite que nunca havia experimentado antes. E então percebi que estava em minha cama inflável, boiando no meio do mar.
Onde esta minha esposa?
O frio voltou.

O Resgate

No sexto dia me encontraram. Como que você sobreviveu, isso é incrível..., diziam médicos e jornalistas...

Queriam saber do que me alimentei. Peixes? Não, gaivota.
Um enfermeiro arrogante me diz que não existem gaivotas em alto mar. O senhor deve estar delirando, durma uma pouco. O medicamento é intensificado, eu apago, sonho com Monique.

Mais tarde me disseram que uma falha mecânica travou uma das turbinas, tentaram um pouso na água e o avião se estraçalhou. O piloto foi encontrado a quinze quilometro de mim. Ele ficou insano e nadou até a morte. É o que chamam de loucura marítima. Minha esposa morreu na queda. Não me deixaram ver seu corpo. Disseram que seria pior pra mim. Ela não estava como antes. Ela estava, como posso dizer, diferente. Ela havia sido parcialmente...
Devorada!
Devorada ?
Não existem gaivotas em alto mar...

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Copos, taxis e periféricos narcóticos

Segunda-feira não é dia de escrever crônica. Segunda-feira não é, sequer, um “dia” – é antes um período de limbo entre a beleza do fim de semana e a aflição da matéria pela metade (e parece que o editor tem um despertador para lembrá-lo de te lembrar que você é um bêbado irresponsável, incapaz de cumprir um prazo sequer. Fuck Off!

Aí, então, você acessa o site do banco. Resistentes 0,93 centavos permanecem incólumes a sua boemia das noites anteriores (uma série de fragmentos rodeados por copos, taxis e periféricos narcóticos). O cigarro já era e você precisa escrever um texto. Teve peito de frango no almoço – o alimento mais pálido e sem graça da Terra. A rádio começa a tocar Guns N’ Roses (ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco...).

A ressaca parece, contrapartida, sob controle – algo tão incomum que o jornalista pensa estar apenas sofrendo de um silêncio maligno de seu órgãos, que a qualquer momento terão um colapso simultâneo e fulminante. Uma piada de mau gosto do destino.

Mas nada acontece!

O Facebook está repleto de besteiras. Segunda-feira, claro, não é dia de curtir fotinhos de cachorrinhos fofinhos fazendo fofuras em toda sua fofolência. À MERDA COM ISSO!

O que será que fazia o Bukowski às segundas-feiras?

O café cheirando na copa lembra a falta de cigarros. A página está em branco e existem duas horas de fita para transcrever. Quero minha assistente, mesmo sabendo que esse negócio de assistente não existe.

São duas e dez.

Onde estava nessa hora ontem?

Ah sim, claro! Muy bueno!

Segunda-feira. Conta no zero. Cigarros, somente os confeccionados manualmente (isso guarda algumas vantagens) e uma interminável semana pela frente; textos pela metade e angústias fictícias. Não que aja, é evidente, um terrível desânimo em recomeçar, mas é incontrolável a relutância em abandonar a alegria do domingo, do sábado, da sexta... Whatever! Que venham os cigarros manuais.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Brasil é desenganado pelos médicos

Quando o senhor Oliveira Brasil adentrou o consultório o doutor pôde, de imediato, chutar um diagnóstico. Claro! Evidente! Sem sombra de dúvida! Os sintomas eram manifestos. Brasil estava branco. Dos pés a cabeça, não se constatava qualquer sinal de melanina. Sofria de uma doença antiga que, mesmo erradicada aqui e ali, volta e meia ressurge – para o terror de todos, pois sua característica mais fundamental é a incrível potencialidade de contágio.

Os primeiros focos desta patologia surgiram na África. Sinais de melhora foram constatados com o uso de uma erva local, popularmente chamada de Mandiba. Para o Sr. Brasil, porém, o tratamento seria ineficaz. O médico decidiu pelo isolamento.

Já na ambulância, o bom doutor questiona quais foram os primeiros sintomas. Responde que parecia sentir seu intestino invadido, lotado e revoltado.

O doutor anota. Faz sentido. Tomou algo para aliviar, volta a indagar. Laxante, replica Brasil, uma “tropa” de laxantes, define. Rapidamente, as tripas estavam limpas e rosadas novamente. Excretou uma massa pútrida e negra, afirma.

Os glóbulos brancos de Brasil pareciam atuar bem, e nenhum sinal de infecção foi verificado. O médico, todavia, resolve repetir o exame de sangue. Segundo ele, glóbulos brancos têm a característica peculiar de cercar o problema, mascarando-o e dificultando o diagnóstico.

Não deu outra. Brasil sofria de Segregacionismus Ignorantus.

O uso dos laxantes foi um grande erro, que somente eliminou os sintomas, sem, no entanto, tratar a causa.

Brasil entra em pânico. O que fazer agora, doutor?

Nada, explica o médico. Agora é esperar, senhor Brasil.

Minha saúde sempre foi perfeita, se antecipa Brasil. Todo o dia tomo um coquetel de medicamentos. Sigo programas internacionais para garantir o bem-estar e funcionamento correto do corpo.

Medidas paliativas, senhor Brasil, conforma o médico, medidas paliativas. Por acaso o senhor se exercitou?

Não!

Estudou?

Não!

Desenvolveu alguma atividade esportiva?

Um futebolzinho, às quartas-feiras..., retruca Brasil.


Pois é, seu Brasil... Um futebolzinho nunca é o suficiente, nunca é o suficiente...

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Rolezinho no shopping diferencia homens de animais - um passeio na Ilha do Dr. Moureau

Numa remota ilha chamada Planeta Terra, Dr. Moureau tenta – por intermédio do governo, controle de taxas de juros e lucros, câmbio, comércio, trabalho assalariado, crescimento econômico, exploração e pauperismo unilateral – transformar “animais” em “homens”.

O experimento parece ter sucesso, e muitos dos “animais” passam a crer terem tornado-se “homens” – o estereótipo de humanidade predefinido por Moureau, pautado no consumo fetichista de bens e serviços, mudez frente à opressão e concordância cega em relação às determinações do estado.

O controle, evidentemente, se dá além da mera ideologia desenvolvida por Moureau. Ciente da natureza “animal”, combativa e questionadora, o bom doutor manipula seus discípulos colocando-se não somente na figura de um “deus a ser adorado”, mas os pune fisicamente a cada nova tentativa de alteração do – frágil – governo social.

A medida, acalmem-se caros leitores, é normalmente acatada também pela maioria dos “animais”, pois, sabem eles, que somente por meio da força, muitas vezes conseguem dominar seus impulsos de “andar em quatro patas” e, com isso, privarem-se do uso de seus cartões de crédito e roupas de marca. Eles querem, acima de tudo, continuar dirigindo seus carros e saboreando a inércia de não ter de se preocupar com nenhuma mudança, pois o fim da história já chegou.

Esse tal de “fim da história”, todavia, também é uma artimanha do sistema moreaulista. Para os simpatizantes desta estrutura, a evolução atingiu o grau máximo e os “homens” só não são “animais” quando adequados a ela.

Porém, é necessário apontar as contradições: na medida em que o mundo de Moureau só pode existir embasado na diferença entre “homens” que detém os sistemas de produção e “animais” que produzem em busca de tornarem-se “homens”, alguns dos “animais” passam a questionar a eficácia do sistema. Eles querem os carros, os tênis, os celulares... E farão qualquer coisa para tê-los, pois só assim serão reconhecidos como “homens”.

Quando não o podem, se revoltam. Ocupam os templos em louvor ao consumo e são rapidamente escorraçados pelos “homens”, com toda a brutalidade decorosa que merecem na figura de “animais” laboriosos que são.

A merda está feita!

As opiniões divergem. De um lado, “animais” afirmam que somente quererem se divertir, compactuar da alegria “infindável” dos "homens" que sobrevém no fim da história. De outro, estes “homens” questionam se a presença de “animais” em ambientes voltados aos “homens” é aceitável, pois somente se comportam como humanos os que conseguem atuar financeiramente como tal – os “animais” não têm dinheiro, para que ir ao shopping? Para fazer arruaça? Para roubar? Vândalos! 

Por fim, um terceiro grupo, nem “homem”, nem “animal”, postado no meio termo da pirâmide social, questiona a segregação originada na imposição de espaços meramente humanos - de um lado o direito de ir e vir, do outro, o direito a propriedade, deixa os "homens/animais" confusos e, na dúvida, colocam o fone de ouvido e seguem caminhando, fingindo não ouvir o mundo ao redor.

A consequência final, não haveria de ser outra, dado que existem muito mais “animais” do que “homens”, é a revolta do primeiro em relação ao segundo. Moureau, abalado, cai de seu trono e é devorado por suas crias, muito mais numerosas e humanas que os “homens” que tentara desacertadamente instituir. Que tentara debilmente controlar.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O Cafife vai ao rolezinho - notas sobre o capitalismo, propaganda e os shoppings

Não é por mero acaso que um sistema econômico cujo caráter primordial é a existência de uma minoria rica em detrimento à maioria pobre se mantém nos altares de tantos indivíduos (e me refiro aos indivíduos pobres). O capitalismo é uma realidade (apesar do caos interno que o rege) irrecusável, ou seja, sua existência e reprodução são patentes, independentemente do fato mais claro de sua ontologia: o método da exploração e, logo, da existência de exploradores e explorados.

Em face de tal especificidade, tão aberta e lógica, somente por meio de dois fatores primordiais sua manutenção pode se fundamentar sem grandes levantes populares, protestos ou, no extremo, a revolução social: a esperança dos pobres em tornarem-se ricos, e o medo dos mesmos em perder o pouco que tem. O temor, especialmente, é utilizado na maioria das vezes por meio de analogias a fracassos como a União Soviética (URSS) ou, até mesmo, períodos anteriores da história (o que pouco se diz, é a distorção que a própria URSS, por exemplo, praticava do comunismo – realizado a revelia da teoria marxiana, e ainda assim coroado sob sua regência).

 Estereótipos
Pode se afirmar sem erro que a ascensão financeira, ou seja, a passagem de uma classe social para outra mais elevada é o fetiche da atualidade. Personagens que saíram da miséria e tornaram-se ricos são os herois do tempo moderno. Para citar um exemplo nacional, podemos tratar do caso do Senor Abravanel, midiaticamente conhecido sob o pseudônimo de Silvio Santos – o capitalista mais aclamado (e por que não amado) do País.

O menino pobre que, somente por meio do esforço individual, da labuta e do destino, chegou ao mais alto grau, tornando-se o multimilionário proprietário de um canal de televisão, um banco, um sistema de capitalização (que é, em natureza, uma loteria), e tantos outros negócios lucrativos. Quanta ingenuidade imaginarmos que tal exceção é a regra. E quanta astúcia dos capitalistas disseminarem a ideia de que trabalhando qualquer um pode, contando com certa dose de sorte e oportunismo, seguir a mesma trilha.
           
Afirmar que todos têm as mesmas oportunidades, apontando a vontade e o empreendedorismo como meio para os fins, é excluir completamente a existência de classes sociais antagônicas. E, por meio desta ideia corrente do ideário filosófico político, de que o homem, como gênero, sempre teve uma natureza intrínseca a seu ser, fato que fundamenta sua sociabilidade, o capitalismo transmuta-se numa forma social natural.

Empreendedorismo
Sob a insígnia dos estereótipos, se inaugura uma nova modalidade: o empreendedorismo. Numa forma de inversão – que, todavia, podemos assumir como uma estratégia – o capitalismo parece deixar, em certa medida, de lado o fator regional utilizado até então como forma majoritária de procedimento à resolução de problemáticas ligadas ao meio social e econômico, e passa a pautar pelo protagonismo de pequenos empresários, muitas vezes estabelecidos em bairros ou cidades.
           
Assim, surge a questão: porque o empreendedorismo, ou seja, o protagonismo de classes antes excluídas do processo de capitalização da economia torna-se foco do sistema? O estereótipo contemporâneo surge mais uma vez – o esforço como ascensão social e, logo, a afirmação de que tal empenho é o fator predominante da elevação financeira dos indivíduos. Segundo o Professor Paulo Lot, Coordenador do Núcleo de Empregabilidade e Apoio Psicopedagógico (NEP) da Universidade São Francisco (USF), “não se concebe mais a dissociação da teoria com a prática, ou seja, da formação com o mercado de trabalho. O empreendedorismo é a criação de algo novo a partir da identificação de uma oportunidade. A dedicação, a persistência e a ousadia aparecem como atitudes imprescindíveis neste processo para obter os objetivos pretendidos”.
          
Segundo ele, o estudante deve aprender a pensar e agir por conta própria, com criatividade, liderança e visão de futuro, para inovar e ocupar o seu espaço no mercado. “É imprescindível uma boa formação empreendedora, onde o próprio universitário seja o protagonista de sua empregabilidade”, completa.

Propaganda
Eis aqui um tópico interessante. De acordo com Christiane Gade, autora do livro “Psicologia do Consumidor”, “fica claro que somente se estudam o comportamento do consumidor [...] países de orientação capitalista”. Isso porque, segundo a autora: “Em sociedades cuja capacidade de produção é pobremente desenvolvida [ela usa o exemplo da URSS] caberá aos planejadores destas sociedades estudar quais são os bens de consumo mais adequados ao seu sistema de produção e colocá-los no mercado baseando-se na premissa de que o consumidor consumirá tudo o que existe para consumir”.
           
Mas nosso foco são as nações que praticam o capital. Porém, antes de continuar, cabe a citação de um personagem do romance de Jean-Jacques Rousseau, intitulado ‘A Nova Heloisa’. Nesta cena, Saint-Preux, sentindo as vicissitudes de um mundo em vias do capitalismo, escreve à Heloisa, sua amada: “Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar”.
           
Não haveria descrição mais pertinente para compreender os efeitos de um mercado capitalista num sujeito! Todavia, a patente despersonalização causada nos indivíduos não parece perturbar o mercado – e de fato não perturba. Ao contrário, é utilizado como mecanismo de marketing.

Se à teoria materialista da história é habitualmente atribuída “a afirmação de que a principal motivação do homem é o desejo de satisfação material”, como afirma Erich Froom, parece que a indústria da propaganda resolveu fundi-la ao pensamento de Freud, “segundo o qual o apetite sexual é que constitui a principal motivação de ação”.

Incongruências teóricas a parte, a metodologia parece funcionar. Discutir se a humanidade pode ou não ser colocada no bojo da reflexão darwiniana acerca da seleção natural por meio de características morfológicas da espécie, assim como se tais distintivos pertinentes à biologia foram depreciados pela modernidade e pelo capitalismo ao nível da posse de bens, não é o intuito deste escrito. Mas é inegável que, atualmente, particularidades econômicas são levadas em consideração no momento em que um indivíduo é analisado por outro indivíduo (ou grupo deles).
           
Entretanto, é necessário cautela. Assumir que o gênero humano estabelece parâmetros de avaliação do caráter alheio através de premissas pré-estabelecidas, de qualquer natureza, pode levar a pensar que os aspectos do capitalismo são de ordem espontânea, invertendo a situação e colocando tal sistema econômico como um resultado, e não como uma causa das características sociais.

Patologia
Uma sociedade na qual o indivíduo encontra-se à revelia de sua plena realização é uma sociedade à qual podemos designar o caráter de doente. Está é a sociedade capitalista. Uma vez aceitando que um sistema social está afetado patologicamente, automaticamente é preciso assumir que o reflexo disto recai sobre os indivíduos que compõem tal sociedade. Dentre as diversas agonias pelas quais as pessoas inseridas no capitalismo passam, uma nos interessa primordialmente: o fenômeno da alienação.
           
Aqui não dissertarei substancialmente sobre a alienação dos meios de produção, tema no qual tanto se debruçou Marx. Gostaria de abordar um viés mais psicológico que econômico, ainda que um advenha do outro. Para dar início a esta discussão, definamos um conceito que será pertinente adiante: o da transferência.
           
Freud observou que pacientes tendem a transferir, para a figura do psicanalista, sentimentos relacionados à sua infância primordialmente experimentados com os pais: amor, ódio, temor ou outros. “Não obstante, não é uma interpretação completa. O paciente adulto não é uma criança, e falar da criança nele [...] não faz justiça à complexidade dos fatos”. Os anseios numa pessoa adulta estão, comumente, relacionados à alienação. Ou seja, num sentido psicopatológico, o indivíduo “não se sente forte, está receoso porque não se sente sujeito ou originador de seus próprios atos”. É sob influência destes sentimentos, que o homem alienado executa a transferência. Socialmente, o problema é maior do que num consultório, onde a dita transferência é destinada ao psicanalista. Em sociedade, isso, muitas vezes, ocorre nas “figuras de autoridade, na vida política, religiosa”.
           
Exemplo disto é a idealização do controle sobre o ato de raciocinar, explicitada por Fromm: “Alguém acredita que pensou alguma coisa, e que sua ideia é resultado de sua própria atividade de reflexão; a verdade é que transfere seu cérebro para os ídolos da opinião pública, os jornais, o governo, ou um líder político. Acredita que estes expressam seu pensamento, quando na realidade ele aceita os pensamentos dessas personalidades como se seus fossem, porque as escolheu para ídolos, deuses da sabedoria e do conhecimento”.
           
Podemos, portanto, dizer que quando a esperança é firmada como o objetivo e não como meio deste, temos um quadro de alienação. É a “esperança na qual o futuro é transformado num ídolo”.  Quantas vezes não nos deparamos com pessoas que transformam a esperança na personificação da prosperidade? Robespierre, certamente, se sentiria orgulhoso: “Apressa-te, ó posteridade, em fazer chegar a hora da igualdade, da justiça, da felicidade!”. Marx, por sua vez, rolaria no túmulo frente aos dias atuais, no qual a história é colocada no sentido de um destino quase karmatico, e a ação do indivíduo têm pouca ou nenhuma importância frente aos acontecimentos. Marx responderia: “A história nada faz, não possui riquezas colossais, não trava batalhas! É antes o homem, o homem vivo e real, quem faz tudo isso. A história não usa o homem como um meio para seus fins, como se ele fosse uma pessoa à parte; ela nada mais é do que a atividade do homem em busca de seus objetivos”.
           
É em grande medida, desta esperança que o capital se utiliza para manutenciar sua reprodução. Uma vez que a progressividade da história independe da ação objetiva da própria humanidade, a esperança que os caminhos levem um indivíduo miserável qualquer à, por exemplo, riquezas, passam da impossibilidade empírica existente para a probabilidade casual pautada por preceitos que beiram a metafísica, quando abordados no mérito realidade.
           
Perdendo a autonomia do próprio percurso histórico, não há ao homem outra culminância que não a alienação. Seus próprios desejos, funções de pensamento e sentimento, tornam-se exteriores a ele. “Essa falta de senso de identidade tem muitas consequências. A mais fundamental e geral é impedir a integração da personalidade total, deixando a pessoa desnuda dentro de si, [e tirando-lhe] a capacidade de desejar uma coisa, ou quando parece desejar, falta autenticidade a tal desejo”.

Conclusão – O shopping
Algumas ideias de cunho mais acadêmico estavam em andamento para a elaboração desta conclusão, quando uma necessidade de âmbito prático obrigou-me a comparecer ao templo da sociedade capitalista de consumo: o Shopping Center (a tinta de minha impressora havia acabado).
           
A explicação contida no parágrafo acima assinala, ao menos, duas questões pertinentes à sociedade atual: 1° a existência de ambientes de consumo, rigidamente controlados, chamados de Shopping Centers; e 2° a necessidade socialmente determinada de que, para o simples ato de comprar tinta para uma impressora, o indivíduo seja obrigado a comparecer no citado ambiente.
           
Para tratar do tema, vou relacionar minha experiência pessoal na citada visita ao shopping Grand Plaza, em Santo André, com falas contidas numa palestra da antiga professora de geografia do primeiro ano de graduação do curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André, Isabel Aparecida Pinto Alvarez. A palestra em questão foi realizada em 16/08/2000 e compõe as discussões do VI Congresso de História Da Região do ABC, nesta edição ocorrido em Ribeirão Pires, no ano 2000. O título da fala de Isabel foi Transformações a partir da implantação dos Shoppings Center – os shoppings como um espaço de normatização. Ela começa utilizando a região do ABC como exemplo:

“Quando olhamos a paisagem no ABC nos últimos anos, e vemos esses grandes equipamentos, cercados, com estacionamentos fechados, acabamentos suntuosos – usando materiais modernos e caros –, com signos da moda indicando as principais lojas e magazines... Esses espaços (os shoppings) não são simples centros de comércio, não são simples locais de venda do que se fez num [dado] processo produtivo. Eles  se constituem como elementos fundamentais [que possibilitam entender] como é que a sociedade urbana se produz e se reproduz neste final de século. Nesse sentido, os shoppings são o ponto de partida para fazermos uma reflexão sobre o que é o modo de vida urbano e o que é a cidade hoje.
           
Realmente, podemos relacionar a existência destes grandes centros de comércio com as necessidades de produção e reprodução da sociedade contemporânea. Ainda mais, podemos relacionar com a atual economia política que, não somente cria ao lado da própria expansão tecnológica e industrial bens específicos de consumo, como também cria os espaços nos quais tais bens devem ser consumidos. Isabel continua:

“O Shopping ABC, que é o antigo Mappin [...] afirma que recebe cerca de 1 milhão e duzentas mil pessoas por mês. Ou seja, recebe por mês, quase metade da população do Grande ABC. O ABC Plaza [atual Grand Plaza] que se situa junto à Estação de Santo André e ao terminal de Trólebus, junto a uma avenida tradicionalmente industrial do município – que é a Avenida Industrial – [...] afirma que chega a receber em média, quando está próximo a datas comemorativas, aos finais de semana, 110 mil pessoas. Quando não está em datas comemorativas recebe cerca de 80 a 85 mil pessoas por final de semana. Então, só pelo fluxo de pessoas que eles atraem, já podemos pensar o diálogo que esses objetos travam com os espaços públicos da cidade. Ao mesmo tempo, também nos leva a refletir sobre seu papel na finalidade urbana. Um empreendimento que atrai 110 mil pessoas num final de semana, que atrai 1 milhão e duzentas mil ao longo de um mês, certamente altera a dinâmica da vida das pessoas e das mercadorias nas cidades”.

E esta alteração na dinâmica foi o meu caso. Nenhuma loja no bairro em que moro vende a tal tinta de impressora. As que vendem estão, em termos de agilidade de locomoção, mais distantes que o shopping (podem estar espacialmente mais próximas, porém, no meu caso que utilizo condução pública, tornam-se inacessíveis – evidentemente, o shopping está numa localidade de fácil acesso para diversos pontos ao seu redor). Ou seja, uma necessidade da sociedade atual – utilizar uma impressora para imprimir um texto – levou-me a compra de um periférico que, por sua vez, somente é encontrado num dado local que, não por coincidência, agrega dezenas de outras lojas, ramos, especialidades etc. que o encantam com variedade de cores, possibilidade e sabores.

“[Isso porque] Os shoppings não são apenas centros de compra. Não são apenas destino final da produção. Eles se constituem num centro de informação e reprodução de um modo de vida. Mudando os referenciais da população com relação aos locais de encontro, de lazer, e de compras. Enquanto a presença dos shoppings não se fazia de maneira significativa, a centralidade urbana [por exemplo em Santo André] estava marcadamente na Rua [Coronel] Oliveira Lima e adjacências. Era uma centralidade que, por ser um espaço público, um espaço da rua, guardava uma série de diferenças: pedintes, [menores] abandonados, catadores de papel, donas de casa, estudantes... [Tais pessoas] viam-se e eram vistos por pessoas de outras classes sociais; de maior poder aquisitivo [...] Os shoppings Center são espaços normatizados. O objetivo é permitir a reprodução da mercadoria. Permitir a reprodução dos valores do consumo. Na rua, por mais que exista o comércio e a venda da mercadoria, o que está colocado é a questão da diferença. Nem tudo pode ser normatizado na rua – ela é o espaço do público, o shopping é o espaço do privado.

E lá estava eu, caminhando pelo shopping em busca da loja na qual compraria o que me propus. Os corredores são, realmente, espaços normatizados repletos de pessoas normatizadas. Tais pessoas, é claro, não são normatizadas pela existência dos shoppings. Ao contrário, os shoppings existem por que tais pessoas estão normatizadas – e o estão em virtude de elementos ideológicos e sociais muito superiores ao shopping em si.


Quando encontrei a loja, senti mais uma vez a mão pesada da necessidade em face da demência do monopólio da compra: o preço é muito mais alto quando só um lugar comercializa o produto. Sem alternativa, comprei.

Sempre que caminho por tais ambientes sinto-me vigiado. Mas isso não é paranoia, verdadeiramente somos vigiados e, quando você não está encaixado aos estereótipos que os seguranças estão acostumados a se deparar diariamente, torna-se foco da atenção dos agentes da ordem.

“Quando você entra no shopping Center, dependendo da forma e da roupa com a qual você entra, o segurança vem barrar. Não sei se você se lembram, no início da década de 1990 veio um cantor punk ao Brasil, um famoso, inglês, não me lembro qual era... Ele veio ao Brasil e foi ao shopping Iguatemi e deu o maior “sururu” porque os seguranças o puseram para fora. E porque? Porque ele estava vestido com as roupas que ele está habituado a vestir. E ele não foi aceito por ser exótico demais”.

Não foi o meu caso. Não fui expulso. Mas para desespero total deste que narra, ao chegar à porta de saída uma tempestade torrencial impedia minha ida ao ponto de ônibus. Nesse momento, realmente senti a perseguição dos seguranças que, ao me verem ir e voltar periodicamente esperando a chuva passar, circular sem sacolas, sem companhia, sem roupas caras ou chave de carro pendente no bolso, certamente pensaram estar diante de um “elemento do caos”. Um indivíduo alienado que não vive sob as asas do agente da felicidade: as compras pelas compras; pela vã saciedade do gasto. 

A cada banco que me sentava para esperar – e agora eles são poucos, pois uma grande quantidade de pontos de parada restringe a circulação dos consumidores e, automaticamente, impede que consumam mais – homens vestindo terno surgiam com seus rádios tentando, inutilmente, serem discretos enquanto comunicavam-se entre si e me olhavam desconfiados. Até mesmo os indivíduos que por ali passeava encaravam aquele sujeito, sem sacolas, como algo no mínimo estranho.

Frente a tal situação, decidi partir e seguir sob a chuva. Melhor se mollhar por livre e espontânea vontade.