quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O Cafife vai ao rolezinho - notas sobre o capitalismo, propaganda e os shoppings

Não é por mero acaso que um sistema econômico cujo caráter primordial é a existência de uma minoria rica em detrimento à maioria pobre se mantém nos altares de tantos indivíduos (e me refiro aos indivíduos pobres). O capitalismo é uma realidade (apesar do caos interno que o rege) irrecusável, ou seja, sua existência e reprodução são patentes, independentemente do fato mais claro de sua ontologia: o método da exploração e, logo, da existência de exploradores e explorados.

Em face de tal especificidade, tão aberta e lógica, somente por meio de dois fatores primordiais sua manutenção pode se fundamentar sem grandes levantes populares, protestos ou, no extremo, a revolução social: a esperança dos pobres em tornarem-se ricos, e o medo dos mesmos em perder o pouco que tem. O temor, especialmente, é utilizado na maioria das vezes por meio de analogias a fracassos como a União Soviética (URSS) ou, até mesmo, períodos anteriores da história (o que pouco se diz, é a distorção que a própria URSS, por exemplo, praticava do comunismo – realizado a revelia da teoria marxiana, e ainda assim coroado sob sua regência).

 Estereótipos
Pode se afirmar sem erro que a ascensão financeira, ou seja, a passagem de uma classe social para outra mais elevada é o fetiche da atualidade. Personagens que saíram da miséria e tornaram-se ricos são os herois do tempo moderno. Para citar um exemplo nacional, podemos tratar do caso do Senor Abravanel, midiaticamente conhecido sob o pseudônimo de Silvio Santos – o capitalista mais aclamado (e por que não amado) do País.

O menino pobre que, somente por meio do esforço individual, da labuta e do destino, chegou ao mais alto grau, tornando-se o multimilionário proprietário de um canal de televisão, um banco, um sistema de capitalização (que é, em natureza, uma loteria), e tantos outros negócios lucrativos. Quanta ingenuidade imaginarmos que tal exceção é a regra. E quanta astúcia dos capitalistas disseminarem a ideia de que trabalhando qualquer um pode, contando com certa dose de sorte e oportunismo, seguir a mesma trilha.
           
Afirmar que todos têm as mesmas oportunidades, apontando a vontade e o empreendedorismo como meio para os fins, é excluir completamente a existência de classes sociais antagônicas. E, por meio desta ideia corrente do ideário filosófico político, de que o homem, como gênero, sempre teve uma natureza intrínseca a seu ser, fato que fundamenta sua sociabilidade, o capitalismo transmuta-se numa forma social natural.

Empreendedorismo
Sob a insígnia dos estereótipos, se inaugura uma nova modalidade: o empreendedorismo. Numa forma de inversão – que, todavia, podemos assumir como uma estratégia – o capitalismo parece deixar, em certa medida, de lado o fator regional utilizado até então como forma majoritária de procedimento à resolução de problemáticas ligadas ao meio social e econômico, e passa a pautar pelo protagonismo de pequenos empresários, muitas vezes estabelecidos em bairros ou cidades.
           
Assim, surge a questão: porque o empreendedorismo, ou seja, o protagonismo de classes antes excluídas do processo de capitalização da economia torna-se foco do sistema? O estereótipo contemporâneo surge mais uma vez – o esforço como ascensão social e, logo, a afirmação de que tal empenho é o fator predominante da elevação financeira dos indivíduos. Segundo o Professor Paulo Lot, Coordenador do Núcleo de Empregabilidade e Apoio Psicopedagógico (NEP) da Universidade São Francisco (USF), “não se concebe mais a dissociação da teoria com a prática, ou seja, da formação com o mercado de trabalho. O empreendedorismo é a criação de algo novo a partir da identificação de uma oportunidade. A dedicação, a persistência e a ousadia aparecem como atitudes imprescindíveis neste processo para obter os objetivos pretendidos”.
          
Segundo ele, o estudante deve aprender a pensar e agir por conta própria, com criatividade, liderança e visão de futuro, para inovar e ocupar o seu espaço no mercado. “É imprescindível uma boa formação empreendedora, onde o próprio universitário seja o protagonista de sua empregabilidade”, completa.

Propaganda
Eis aqui um tópico interessante. De acordo com Christiane Gade, autora do livro “Psicologia do Consumidor”, “fica claro que somente se estudam o comportamento do consumidor [...] países de orientação capitalista”. Isso porque, segundo a autora: “Em sociedades cuja capacidade de produção é pobremente desenvolvida [ela usa o exemplo da URSS] caberá aos planejadores destas sociedades estudar quais são os bens de consumo mais adequados ao seu sistema de produção e colocá-los no mercado baseando-se na premissa de que o consumidor consumirá tudo o que existe para consumir”.
           
Mas nosso foco são as nações que praticam o capital. Porém, antes de continuar, cabe a citação de um personagem do romance de Jean-Jacques Rousseau, intitulado ‘A Nova Heloisa’. Nesta cena, Saint-Preux, sentindo as vicissitudes de um mundo em vias do capitalismo, escreve à Heloisa, sua amada: “Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar”.
           
Não haveria descrição mais pertinente para compreender os efeitos de um mercado capitalista num sujeito! Todavia, a patente despersonalização causada nos indivíduos não parece perturbar o mercado – e de fato não perturba. Ao contrário, é utilizado como mecanismo de marketing.

Se à teoria materialista da história é habitualmente atribuída “a afirmação de que a principal motivação do homem é o desejo de satisfação material”, como afirma Erich Froom, parece que a indústria da propaganda resolveu fundi-la ao pensamento de Freud, “segundo o qual o apetite sexual é que constitui a principal motivação de ação”.

Incongruências teóricas a parte, a metodologia parece funcionar. Discutir se a humanidade pode ou não ser colocada no bojo da reflexão darwiniana acerca da seleção natural por meio de características morfológicas da espécie, assim como se tais distintivos pertinentes à biologia foram depreciados pela modernidade e pelo capitalismo ao nível da posse de bens, não é o intuito deste escrito. Mas é inegável que, atualmente, particularidades econômicas são levadas em consideração no momento em que um indivíduo é analisado por outro indivíduo (ou grupo deles).
           
Entretanto, é necessário cautela. Assumir que o gênero humano estabelece parâmetros de avaliação do caráter alheio através de premissas pré-estabelecidas, de qualquer natureza, pode levar a pensar que os aspectos do capitalismo são de ordem espontânea, invertendo a situação e colocando tal sistema econômico como um resultado, e não como uma causa das características sociais.

Patologia
Uma sociedade na qual o indivíduo encontra-se à revelia de sua plena realização é uma sociedade à qual podemos designar o caráter de doente. Está é a sociedade capitalista. Uma vez aceitando que um sistema social está afetado patologicamente, automaticamente é preciso assumir que o reflexo disto recai sobre os indivíduos que compõem tal sociedade. Dentre as diversas agonias pelas quais as pessoas inseridas no capitalismo passam, uma nos interessa primordialmente: o fenômeno da alienação.
           
Aqui não dissertarei substancialmente sobre a alienação dos meios de produção, tema no qual tanto se debruçou Marx. Gostaria de abordar um viés mais psicológico que econômico, ainda que um advenha do outro. Para dar início a esta discussão, definamos um conceito que será pertinente adiante: o da transferência.
           
Freud observou que pacientes tendem a transferir, para a figura do psicanalista, sentimentos relacionados à sua infância primordialmente experimentados com os pais: amor, ódio, temor ou outros. “Não obstante, não é uma interpretação completa. O paciente adulto não é uma criança, e falar da criança nele [...] não faz justiça à complexidade dos fatos”. Os anseios numa pessoa adulta estão, comumente, relacionados à alienação. Ou seja, num sentido psicopatológico, o indivíduo “não se sente forte, está receoso porque não se sente sujeito ou originador de seus próprios atos”. É sob influência destes sentimentos, que o homem alienado executa a transferência. Socialmente, o problema é maior do que num consultório, onde a dita transferência é destinada ao psicanalista. Em sociedade, isso, muitas vezes, ocorre nas “figuras de autoridade, na vida política, religiosa”.
           
Exemplo disto é a idealização do controle sobre o ato de raciocinar, explicitada por Fromm: “Alguém acredita que pensou alguma coisa, e que sua ideia é resultado de sua própria atividade de reflexão; a verdade é que transfere seu cérebro para os ídolos da opinião pública, os jornais, o governo, ou um líder político. Acredita que estes expressam seu pensamento, quando na realidade ele aceita os pensamentos dessas personalidades como se seus fossem, porque as escolheu para ídolos, deuses da sabedoria e do conhecimento”.
           
Podemos, portanto, dizer que quando a esperança é firmada como o objetivo e não como meio deste, temos um quadro de alienação. É a “esperança na qual o futuro é transformado num ídolo”.  Quantas vezes não nos deparamos com pessoas que transformam a esperança na personificação da prosperidade? Robespierre, certamente, se sentiria orgulhoso: “Apressa-te, ó posteridade, em fazer chegar a hora da igualdade, da justiça, da felicidade!”. Marx, por sua vez, rolaria no túmulo frente aos dias atuais, no qual a história é colocada no sentido de um destino quase karmatico, e a ação do indivíduo têm pouca ou nenhuma importância frente aos acontecimentos. Marx responderia: “A história nada faz, não possui riquezas colossais, não trava batalhas! É antes o homem, o homem vivo e real, quem faz tudo isso. A história não usa o homem como um meio para seus fins, como se ele fosse uma pessoa à parte; ela nada mais é do que a atividade do homem em busca de seus objetivos”.
           
É em grande medida, desta esperança que o capital se utiliza para manutenciar sua reprodução. Uma vez que a progressividade da história independe da ação objetiva da própria humanidade, a esperança que os caminhos levem um indivíduo miserável qualquer à, por exemplo, riquezas, passam da impossibilidade empírica existente para a probabilidade casual pautada por preceitos que beiram a metafísica, quando abordados no mérito realidade.
           
Perdendo a autonomia do próprio percurso histórico, não há ao homem outra culminância que não a alienação. Seus próprios desejos, funções de pensamento e sentimento, tornam-se exteriores a ele. “Essa falta de senso de identidade tem muitas consequências. A mais fundamental e geral é impedir a integração da personalidade total, deixando a pessoa desnuda dentro de si, [e tirando-lhe] a capacidade de desejar uma coisa, ou quando parece desejar, falta autenticidade a tal desejo”.

Conclusão – O shopping
Algumas ideias de cunho mais acadêmico estavam em andamento para a elaboração desta conclusão, quando uma necessidade de âmbito prático obrigou-me a comparecer ao templo da sociedade capitalista de consumo: o Shopping Center (a tinta de minha impressora havia acabado).
           
A explicação contida no parágrafo acima assinala, ao menos, duas questões pertinentes à sociedade atual: 1° a existência de ambientes de consumo, rigidamente controlados, chamados de Shopping Centers; e 2° a necessidade socialmente determinada de que, para o simples ato de comprar tinta para uma impressora, o indivíduo seja obrigado a comparecer no citado ambiente.
           
Para tratar do tema, vou relacionar minha experiência pessoal na citada visita ao shopping Grand Plaza, em Santo André, com falas contidas numa palestra da antiga professora de geografia do primeiro ano de graduação do curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André, Isabel Aparecida Pinto Alvarez. A palestra em questão foi realizada em 16/08/2000 e compõe as discussões do VI Congresso de História Da Região do ABC, nesta edição ocorrido em Ribeirão Pires, no ano 2000. O título da fala de Isabel foi Transformações a partir da implantação dos Shoppings Center – os shoppings como um espaço de normatização. Ela começa utilizando a região do ABC como exemplo:

“Quando olhamos a paisagem no ABC nos últimos anos, e vemos esses grandes equipamentos, cercados, com estacionamentos fechados, acabamentos suntuosos – usando materiais modernos e caros –, com signos da moda indicando as principais lojas e magazines... Esses espaços (os shoppings) não são simples centros de comércio, não são simples locais de venda do que se fez num [dado] processo produtivo. Eles  se constituem como elementos fundamentais [que possibilitam entender] como é que a sociedade urbana se produz e se reproduz neste final de século. Nesse sentido, os shoppings são o ponto de partida para fazermos uma reflexão sobre o que é o modo de vida urbano e o que é a cidade hoje.
           
Realmente, podemos relacionar a existência destes grandes centros de comércio com as necessidades de produção e reprodução da sociedade contemporânea. Ainda mais, podemos relacionar com a atual economia política que, não somente cria ao lado da própria expansão tecnológica e industrial bens específicos de consumo, como também cria os espaços nos quais tais bens devem ser consumidos. Isabel continua:

“O Shopping ABC, que é o antigo Mappin [...] afirma que recebe cerca de 1 milhão e duzentas mil pessoas por mês. Ou seja, recebe por mês, quase metade da população do Grande ABC. O ABC Plaza [atual Grand Plaza] que se situa junto à Estação de Santo André e ao terminal de Trólebus, junto a uma avenida tradicionalmente industrial do município – que é a Avenida Industrial – [...] afirma que chega a receber em média, quando está próximo a datas comemorativas, aos finais de semana, 110 mil pessoas. Quando não está em datas comemorativas recebe cerca de 80 a 85 mil pessoas por final de semana. Então, só pelo fluxo de pessoas que eles atraem, já podemos pensar o diálogo que esses objetos travam com os espaços públicos da cidade. Ao mesmo tempo, também nos leva a refletir sobre seu papel na finalidade urbana. Um empreendimento que atrai 110 mil pessoas num final de semana, que atrai 1 milhão e duzentas mil ao longo de um mês, certamente altera a dinâmica da vida das pessoas e das mercadorias nas cidades”.

E esta alteração na dinâmica foi o meu caso. Nenhuma loja no bairro em que moro vende a tal tinta de impressora. As que vendem estão, em termos de agilidade de locomoção, mais distantes que o shopping (podem estar espacialmente mais próximas, porém, no meu caso que utilizo condução pública, tornam-se inacessíveis – evidentemente, o shopping está numa localidade de fácil acesso para diversos pontos ao seu redor). Ou seja, uma necessidade da sociedade atual – utilizar uma impressora para imprimir um texto – levou-me a compra de um periférico que, por sua vez, somente é encontrado num dado local que, não por coincidência, agrega dezenas de outras lojas, ramos, especialidades etc. que o encantam com variedade de cores, possibilidade e sabores.

“[Isso porque] Os shoppings não são apenas centros de compra. Não são apenas destino final da produção. Eles se constituem num centro de informação e reprodução de um modo de vida. Mudando os referenciais da população com relação aos locais de encontro, de lazer, e de compras. Enquanto a presença dos shoppings não se fazia de maneira significativa, a centralidade urbana [por exemplo em Santo André] estava marcadamente na Rua [Coronel] Oliveira Lima e adjacências. Era uma centralidade que, por ser um espaço público, um espaço da rua, guardava uma série de diferenças: pedintes, [menores] abandonados, catadores de papel, donas de casa, estudantes... [Tais pessoas] viam-se e eram vistos por pessoas de outras classes sociais; de maior poder aquisitivo [...] Os shoppings Center são espaços normatizados. O objetivo é permitir a reprodução da mercadoria. Permitir a reprodução dos valores do consumo. Na rua, por mais que exista o comércio e a venda da mercadoria, o que está colocado é a questão da diferença. Nem tudo pode ser normatizado na rua – ela é o espaço do público, o shopping é o espaço do privado.

E lá estava eu, caminhando pelo shopping em busca da loja na qual compraria o que me propus. Os corredores são, realmente, espaços normatizados repletos de pessoas normatizadas. Tais pessoas, é claro, não são normatizadas pela existência dos shoppings. Ao contrário, os shoppings existem por que tais pessoas estão normatizadas – e o estão em virtude de elementos ideológicos e sociais muito superiores ao shopping em si.


Quando encontrei a loja, senti mais uma vez a mão pesada da necessidade em face da demência do monopólio da compra: o preço é muito mais alto quando só um lugar comercializa o produto. Sem alternativa, comprei.

Sempre que caminho por tais ambientes sinto-me vigiado. Mas isso não é paranoia, verdadeiramente somos vigiados e, quando você não está encaixado aos estereótipos que os seguranças estão acostumados a se deparar diariamente, torna-se foco da atenção dos agentes da ordem.

“Quando você entra no shopping Center, dependendo da forma e da roupa com a qual você entra, o segurança vem barrar. Não sei se você se lembram, no início da década de 1990 veio um cantor punk ao Brasil, um famoso, inglês, não me lembro qual era... Ele veio ao Brasil e foi ao shopping Iguatemi e deu o maior “sururu” porque os seguranças o puseram para fora. E porque? Porque ele estava vestido com as roupas que ele está habituado a vestir. E ele não foi aceito por ser exótico demais”.

Não foi o meu caso. Não fui expulso. Mas para desespero total deste que narra, ao chegar à porta de saída uma tempestade torrencial impedia minha ida ao ponto de ônibus. Nesse momento, realmente senti a perseguição dos seguranças que, ao me verem ir e voltar periodicamente esperando a chuva passar, circular sem sacolas, sem companhia, sem roupas caras ou chave de carro pendente no bolso, certamente pensaram estar diante de um “elemento do caos”. Um indivíduo alienado que não vive sob as asas do agente da felicidade: as compras pelas compras; pela vã saciedade do gasto. 

A cada banco que me sentava para esperar – e agora eles são poucos, pois uma grande quantidade de pontos de parada restringe a circulação dos consumidores e, automaticamente, impede que consumam mais – homens vestindo terno surgiam com seus rádios tentando, inutilmente, serem discretos enquanto comunicavam-se entre si e me olhavam desconfiados. Até mesmo os indivíduos que por ali passeava encaravam aquele sujeito, sem sacolas, como algo no mínimo estranho.

Frente a tal situação, decidi partir e seguir sob a chuva. Melhor se mollhar por livre e espontânea vontade.

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