Dor e desespero pelo corpo,
subindo, escalando como vermes lhe brotando de feridas que cheiram a carniça.
Esse cheiro agora é meu e, mesmo após todas as dores sequentes ao
primeiro encarniçado, eis que sinto, esporadicamente, o referido odor maldito.
Sinto sempre ao lembrar quem eu sou e de onde vim. Sinto vontade de morrer
quando estou fedendo como ele. Fedendo como ele fede no trem que, duas ou três
vezes por semana, pegamos rumo ao hospital do câncer de São Paulo. O câncer
fede. E cidades pequenas têm o costume de mandar seu lixo feder longe. Foi
assim que acabamos extraviados para a capital.
Sinto também o nojo ao redor. Ele
brota e se esconde na medida do decoro; mas existe, é visível e demonstra o
patente: seres humanos fogem da dor e buscam o prazer, e isso significa ignorar
o existente e relevar-se ao cômodo (um esforço ao não contato com a morte:
nunca me apresentem o ruim; brindem-me com a mais adocicada ilusão e serei,
eternamente, teu servo leal e dedicado).
Ela, jovem, trocando mensagens
pelo celular, feliz e iludida, quer se levantar; vê o catarro escorrendo da
cânula traqueotômica dele e se depositando na camisa. Ela quer sair do seu
lugar - fugir para as colinas, para o vale do Rivotril ou de qualquer
felicidade construída. Vê aquele plasma se manifestar por um buraco que não
devia estar ali e borrar de rosa o tecido amarelo da camisa. O som do escarro é
um choque e lá vem o líquido viscoso nascido de pulmões em decomposição. Tem um
tumor fugindo do pescoço em forma de sangue e carne viva também. Dói como um
banho de óleo fervente que nunca acaba. Como uma ferida pútrida que lhe nasce
em vida. A morte, enquanto andante, a existência perdendo o sentido léxico:
vai, que te é mais válido, pobre coitado... Mas o sofrimento é invisível,
pois, caso não o fosse, ver-nos-íamos todos em putrefação, e seria o odor,
dele, antes um sinal de alerta a de repúdio; o complacente repúdio dos
explorados que amam seus exploradores.
A primeira baixa foi a
autoestima, seguiu-se a vontade de viver e o amor próprio - este tão frágil
ante as infindáveis campanhas que, na medida da autopromoção baseada nos bens
de consumo, são em suma a erradicação dos não-consumidores: repugnantes indivíduos
que celebram a igualdade em parâmetros de justiça em tempos de meritocracia -
diga-me o que tens e te direi quem és, eis o novo evangelho.
Tem outras baixas também: a
burocracia faz massacres, faz com que nos odiemos, coloca trabalhadores contra
trabalhadores, classe igual contra classe igual enquanto, os superiores, os que
não pegam filas, riem, desatadamente, entre coquetéis de camarão e doses de insolência.
Eles se curam, nós, pegamos o trem... De novo, e estamos numa terça-feira
agora:
Doses disso e daquilo, curativo,
sacola com papéis para escarrar, deixa o carro no estacionamento para pegar a
condução - pois o trânsito é pior que a lotação - e segue. Volta amanhã, de
novo, e depois de amanhã, de novo. Trabalho? Quem tem um doente em casa não
trabalha - e também não ganha! hahaha Que piada, você recebe tratamento de
graça - claro, imposto não paga a saúde, paga a pensão dos parlamentares que se
reproduziram com pessoas tão iludidas com o poder quanto a enésima potência de
um Smigul do Senhor dos Anéis (meu precioso...).
Tira os dentes. Toma o
antibiótico. "Senhor, a morfina é para seu bem, porque se negar a
tomá-la?".
Na primeira vez que estivemos no
hospital do câncer, um mendigo indicou o caminho quando, perdidos, saímos da
estação das Clínicas, olhando para os lados e tentando determinar para onde ir.
Me emocionei: a assistência sempre vem dos que não têm nada, pois só frente à
empatia recíproca a solidariedade é possível - e somente à partir da
experiência de reciprocidade é que experimentamos a solidariedade.
Ele entrou por três vezes em meu
quarto, enquanto escrevia isso, para que eu lhe afrouxasse o colar que, hoje,
lhe segura um cano metálico atravessando a traqueia e permite que, sem o uso
dos canais do pescoço, respire - mal, muito mal... Não é com facilidade que ele faz isso. Houveram
tempos, não muito distantes, em que sua
autonomia era quase monárquica. Um rei, em seu lar, após anos de servidão numa
empresa química. Anos de submissão, de plantões, de destituições do gozo do trabalho,
a única atividade fundamental do indivíduo humano. Aprende-se, entretanto, a
submissão com a mesma facilidade que se empreende a rebeldia e, tampouco saímos
da adolescência dos desejos, estamos jogado na maturidade das imposições:
relevados ao necessário, o mínimo necessário e, de resto: "deixe que nos
explorem em seu nome". Oportunistas são os que, por oportuna ocasião,
delimitam nossas perspectivas de existência, nossa autonomia, nosso direito de
ser, como todos são por natureza, como todos deveriam ser... Livres!
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