segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Sobre porcos e porcos

Estarei morta em algumas horas, estirada no chão da avenida. É uma medida de coragem, eu diria.Mas muitos chamam de covardia. Que seja covardia então! Não é essa a minha opinião, não, não é. Tenho coragem de acreditar que viver só é válido em circunstâncias específicas, e não as terei, em breve. Ao menos tenho a decência de partir antes de meu aniversário de trinta anos.

Antes de feder.

Aos 10 anos tudo é possível. Mas 19 anos depois, a perspectiva muda. Aqui, do alto do relógio da estação da Luz, as pessoas são formiguinhas insignificantes. Se Deus existisse, certamente teria essa mesma visão de nós. Ele não tem visão de nada! Um bombeiro tentou se aproximar e perguntou a razão. Porque alguém quer tirar a própria vida? Sou tão bonita, tão jovem, porque abrir mão do presente mais precioso do universo? Não respondi. Pedi apenas que se mantivesse afastado. Isso, ou eu pularia. Ele se foi e agora um novo profissional se aproxima da pequena entrada lateral que leva ao parapeito. Um psiquiatra, com diplomas e mais diplomas, cujo nome vi num jornal e requisitei a presença. Ele quer se sentar e conversar sobre o assunto. Quer saber a mesma coisa: "porque?". Retruco a questão: "porque viver?". Ele quer saber minha história. Esmiuçar minha determinação em busca de um ponto frágil que me tire daqui. Quer fazer seu trabalho, tornar-se famoso com meu drama. Quer o que todos querem: destaque no rebanho.

Peço então que ele me conte a dele.

"Me conte algo, que lhe contarei algo", diz. Concordo, mas ele começa.

"O que você quer saber", questiona o médico.

Comece do começo. Sua mãe te cuspiu do útero, e depois.

"Depois fui criado como católico, numa cidade chamada Bauru"

Conheço essa cidade, na minha infância, visitava o sítio de um tio, nos arredores dali.

"É um lugar bonito!"

Não, não é. Ele fede mais do que tudo. Você, inclusive, tem um cheiro insuportável.

"A subida até aqui não foi fácil", conta ele.

O psiquiatra não se lembra, assim como eu, de feder na infância. O fedor vem com a maturidade. O ser humano apodrenta e passa a cheirar mal, até perecer definitivamente sob a terra. Federei apenas longe dos narizes.

Não vou esperar para começar a feder.

"Talvez, então, meu fedor seja algo além do suor de subir as escadas, tenho 49, sou, comparado a você, um velho"

E em Bauru.

"Não, não era velho em Bauru"

Quando saiu de lá?

"Aos 30"

Já se fede aos 30, você é um mentiroso. Foi com essa idade que federam pra mim pela primeira vez. Em cima de mim, bufando e cuspindo hálito de chorume. Um fedorento em uma criança limpa, inócua. Fedeu e se foi. Foi virar doutor na capital. Se destacou e esqueceu que fedia.

Ele não se lembra de feder. Eles nunca lembram. Digo a ele o nome do sítio de meu tio. O sítio que seu pai tomara de meu tio. O sítio que ele visitara e que me pedira para lhe mostrar os porcos.

Ele não se lembra.

Ele finge. Alarga o colarinho.

Os porcos foram testemunha e ele não se lembra.

O feto que caiu de mim alguns meses depois também não se lembra.

Pulo e o faço me acompanhar.

Nada é por acaso.

Nunca federei em vida.


Não como o doutor.

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