Estarei morta em algumas horas,
estirada no chão da avenida. É uma medida de coragem, eu diria.Mas muitos chamam
de covardia. Que seja covardia então! Não é essa a minha opinião, não, não é.
Tenho coragem de acreditar que viver só é válido em circunstâncias específicas,
e não as terei, em breve. Ao menos tenho a decência de partir antes de meu aniversário de trinta anos.
Antes de feder.
Aos 10 anos tudo é possível. Mas 19
anos depois, a perspectiva muda. Aqui, do alto do relógio da estação da Luz, as
pessoas são formiguinhas insignificantes. Se Deus existisse, certamente teria
essa mesma visão de nós. Ele não tem visão de nada! Um bombeiro tentou se
aproximar e perguntou a razão. Porque alguém quer tirar a própria vida? Sou tão
bonita, tão jovem, porque abrir mão do presente mais precioso do universo? Não
respondi. Pedi apenas que se mantivesse afastado. Isso, ou eu pularia. Ele se
foi e agora um novo profissional se aproxima da pequena entrada lateral que
leva ao parapeito. Um psiquiatra, com diplomas e mais diplomas, cujo nome vi
num jornal e requisitei a presença. Ele quer se sentar e conversar sobre o
assunto. Quer saber a mesma coisa: "porque?". Retruco a questão:
"porque viver?". Ele quer saber minha história. Esmiuçar minha
determinação em busca de um ponto frágil que me tire daqui. Quer fazer seu
trabalho, tornar-se famoso com meu drama. Quer o que todos querem: destaque no
rebanho.
Peço então que ele me conte a
dele.
"Me conte algo, que lhe contarei
algo", diz. Concordo, mas ele começa.
"O que você quer
saber", questiona o médico.
Comece do começo. Sua mãe te
cuspiu do útero, e depois.
"Depois fui criado como
católico, numa cidade chamada Bauru"
Conheço essa cidade, na minha
infância, visitava o sítio de um tio, nos arredores dali.
"É um lugar bonito!"
Não, não é. Ele fede mais do que
tudo. Você, inclusive, tem um cheiro insuportável.
"A subida até aqui não foi
fácil", conta ele.
O psiquiatra não se lembra, assim
como eu, de feder na infância. O fedor vem com a maturidade. O ser humano apodrenta
e passa a cheirar mal, até perecer definitivamente sob a terra. Federei apenas
longe dos narizes.
Não vou esperar para começar a
feder.
"Talvez, então, meu fedor
seja algo além do suor de subir as escadas, tenho 49, sou, comparado a você, um
velho"
E em Bauru.
"Não, não era velho em Bauru"
Quando saiu de lá?
"Aos 30"
Já se fede aos 30, você é um
mentiroso. Foi com essa idade que federam pra mim pela primeira vez. Em cima de
mim, bufando e cuspindo hálito de chorume. Um fedorento em uma criança limpa,
inócua. Fedeu e se foi. Foi virar doutor na capital. Se destacou e esqueceu que
fedia.
Ele não se lembra de feder. Eles
nunca lembram. Digo a ele o nome do sítio de meu tio. O sítio que seu pai
tomara de meu tio. O sítio que ele visitara e que me pedira para lhe mostrar os
porcos.
Ele não se lembra.
Ele finge. Alarga o colarinho.
Os porcos foram testemunha e ele
não se lembra.
O feto que caiu de mim alguns
meses depois também não se lembra.
Pulo e o faço me acompanhar.
Nada é por acaso.
Nunca federei em vida.
Não como o doutor.
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